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segunda-feira, 9 de março de 2009
sexta-feira, 6 de março de 2009
Sumário - Busca Rápida
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- Araruama - "Hidráulica e sedimentação do Canal de Itajuru – Lagoa de Araruama." - por Lessa (1990)
- Ciência Normal - "A Ciência Normal e seus Perigos". por Karl Popper
- Cecília Meirelles
- Epistemologia - O que é Epistemologia?
- Florbela Espanca
- Geoarqueologia – O que é Geoarqueologia
- Heracleitos – Do Ser e do Estar - por Rubens Antonio
- Hidra de Lerna - “Prehistoric Coastal Environments in Greece: The Vanished Landscapes of Dimini Bay and Lake Lerna.” - por Zanger, 1991.
- Karl Popper e Thomas Kuhn: reflexões... por Francisco Ramos Neves
- “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?”, por Thomas Kuhn
- Mendel - "A História das Leis de Mendel na Perspectiva Fleckiana." - por Leite, Ferrari e Delizoicov, 2001.
- Nietzsche e o Nazismo - Nas asas da Mentira - por Rubens Antonio
- O Passo das Termópilas – por Kraft, Rapp Jr, Szemler, Tziavos, Kase (1987)
- Safo – Filha Imortal de Afrodite - por Rubens Antonio
- Um discurso
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"Fanatismo" - Florbela Espanca
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"Minh’alma, de sonhar-Te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de Te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que Tu és já toda a minha Vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do Teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em Ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que Tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
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Flor Bela de Alma da Conceição Espanca (1896 – 1930) escreveu seu primeiro poema aos 7 anos de idade. “A Vida e a Morte”. Casou-se no seu aniversário de 17 anos. Concluiu o curso de Letras aos 21.
Foi a primeira mulher a adentrar o curso de Direito da Universidade de Lisboa.
Sofreu um aborto involuntário aos 23 anos.
Publicou o “Livro de Mágoas”.
Começou a apresentar quadro de transtornos mentais. Separou-se. Casou-se novamente um ano depois. Publicou o “Livro de Soror Saudade” aos 27 anos. Sofreu novo aborto. Separou-se. Aos 29 anos casou-se pela terceira vez. A morte do irmão a abala profundamente. Escreve “As Máscaras do Destino”.
Diagnosticada de um edema pulmonar, tentou suicídio duas vezes, em outubro e novembro de 1930. Conseguiu, afinal, precisamente no dia do seu aniversário... 8 de Dezembro de 1930, por envenenamento.
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"Minh’alma, de sonhar-Te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de Te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que Tu és já toda a minha Vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do Teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em Ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que Tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
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Flor Bela de Alma da Conceição Espanca (1896 – 1930) escreveu seu primeiro poema aos 7 anos de idade. “A Vida e a Morte”. Casou-se no seu aniversário de 17 anos. Concluiu o curso de Letras aos 21.
Foi a primeira mulher a adentrar o curso de Direito da Universidade de Lisboa.
Sofreu um aborto involuntário aos 23 anos.
Publicou o “Livro de Mágoas”.
Começou a apresentar quadro de transtornos mentais. Separou-se. Casou-se novamente um ano depois. Publicou o “Livro de Soror Saudade” aos 27 anos. Sofreu novo aborto. Separou-se. Aos 29 anos casou-se pela terceira vez. A morte do irmão a abala profundamente. Escreve “As Máscaras do Destino”.
Diagnosticada de um edema pulmonar, tentou suicídio duas vezes, em outubro e novembro de 1930. Conseguiu, afinal, precisamente no dia do seu aniversário... 8 de Dezembro de 1930, por envenenamento.
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domingo, 1 de março de 2009
Nietzsche e o Nazismo - Nas asas da Mentira
por Rubens Antonio
Reconstituamos imaginariamente uma cena. Weimar, Alemanha, 2 de novembro de 1933. O chanceler Adolf Hitler, acompanhado de séquito e pompa, adentrou um museu, parando diante de uma velha senhora, que o aguardava com impecáveis orgulho e postura aristocráticos. Em seu discurso, Elisabeth Foester enfatizou os tradicionais germanismo e anti-semitismo da sua família, confirmando o chanceler: “Em acordo com os desejos do Criador Todo Poderoso, atuando contra o Judeu, estamos lutando em Seu nome.” À saída, uma orquestra, com toque marcial, executava algumas peças, dentre as quais a “Cavalgada das Walkírias”, do compositor Richard Wagner, enquanto um sorridente Hitler, exibiu aos espectadores entusiasmados um precioso presente que recebera como regalo, um bastonete que pertencera ao irmão da anfitriã, o filósofo Friedrich Nietzsche, a quem aquele museu e cerimônia eram dedicados.
Hitler recepcionado por Elisabeth Foester, irmã de Friedrich Nietzsche
Para os nazistas, uma leitura praticamente obrigatória era “Assim falou Zarathustra”, sonhando com a materialização, na sua Alemanha, do Super-Homem vislumbrado por aquele filósofo que, arrasado pela sífilis, falecera a 25 de agosto de 1900. Nas mochilas de uma boa parte dos soldados alemães que avançaram no sonho do mundo ariano, essa obra era um dos componentes básicos, a reforçar o seu norte ideológico.
O ferrenho ódio anti-semita seguiria o ditador nazista até a última frase do testamento, pouco anterior ao seu suicídio: “Acima de tudo, eu conclamo ao governo e ao povo a sustentar as leis raciais até o limite, e a resistirem ao envenenador de todas as nações, o Judaísmo internacional”. Datou e assinou: “Berlim, 29 de abril, 1945, 4 horas... Adolf Hitler”.
A imagem de um Nietzsche anti-semita e germanista perdurou apenas um pouco mais além da ruína da Alemanha nazista. Foi então que o mergulho nos arquivos revelou que estávamos diante de uma das mais contundentes adulterações da História. Ficou muito claro, observou Georges Bataille, que não houve nada que Nietzsche houvesse afirmado de uma maneira mais inequívoca que seu ódio aos anti-semitas, estando amplamente demonstrada a incompatibilidade total.
O racismo e o nacionalismo foram tidos pelo filósofo, sem dúvida alguma, como formas explícitas de estupidez.
Nietzsche catatônico - Manicônio de Jena
A verdade é que, após a pane mental de Nietzsche, em 1889, pela doença, suas obras, que num primeiro momento ficaram sob custódia da mãe, logo passaram a ser administradas pela irmã. Esta foi a grande responsável pela divulgação maior do seu nome, ao investir em edições baratas, transformando-as, lembrou Ernani Chaves, num empreendimento lucrativo. A sua ânsia pela comercialização do que tinha em mãos foi tal que chegou mesmo a vender o direito a verem o filósofo paralisado pela doença. Mas o lado mais terrível, em termos da obra do irmão, é que também cuidou da sua anti-semitização e germanização, utilizando-se de cortes e ocultações, completando e falsificando anotações. Ou seja, foi responsável direta no processo de monstrificação de Nietzsche.
Elisabeth Foester
Elisabeth foi enterrada com honras oficiais, em 1935, tentando levar consigo fatos como o de as citações diante de Hitler não serem obra do irmão. Eram lavra do seu marido, Bernard Foester, que Nietzsche odiara e repudiara, afirmando “jamais acompanhar alguém que esteja implicado nessa farsa desavergonhada de racismo”.
A trajetória do anti-semitismo é muito mais antiga que o período da produção filosófica nietzscheana, mas era, em princípio, fundamentalmente baseada em critérios religiosos e, podemos até enxergar esse viés, econômicos. Entretanto, tudo começara a mudar com o “Dicionário Filosófico” de Voltaire, publicado em 1764, que, segundo Theda Browdy, forneceu a mais expressiva base secular ao anti-semitismo, que veria, a partir de então, uma grande progressão, permeando praticamente todos os sistemas que germinavam à época.
Nietzsche e sua irmã, Elisabeth Foester
Isto desde o grande imperialismo napoleônico, que, em 1807, forçou a revisão da cidadania e paridade dos judeus, reconhecida na Revolução Francesa, até o socialismo, com Alphonse Toussenel, em 1845, condenando veementemente o poder financeiro judeu internacional. O compositor Richard Wagner, a partir de 1850, sob pseudônimo, adentrou o campo das publicações repudiando o papel dos judeus na música, enquanto Count Gobineau reforçou ainda mais a base teórica do anti-semitismo, com seu “Ensaio sobre a desigualdade das Raças Humanas”, de 1855.
Se, entre 1867 e 1871, a Alemanha, a Áustria e a Hungria instituíram legalmente a igualdade de direitos dos judeus, em paralelo, o caminho era o da reação a esse fato.
As grandes crises financeiras, que se seguiram às guerras, eram logo creditadas aos judeus, e, em 1879, Wilhelm Marr marcou claramente a questão como política, ao fundar um partido que afirmava como referência maior o anti-semitismo. A catalização de outros partidos, como o Social Cristão, na Alemanha, para o anti-semitismo, começou a se fazer mais claramente, enquanto historiadores como Heinrich von Treitschke creditavam e enfatizavam, cada vez mais, o papel de vilão aos semitas.
Era nesse ambiente que as concepções de Nietzsche circulavam, tendo anotado Gilles Deleuze que “os nazistas tiveram relações ambíguas com a obra de Nietzsche, porque agradava-lhes utilizá-las, mas não poderiam faze-lo se não despedaçando-a, falsificando edições, proibindo trechos importantes.” O próprio Hitler, apesar de ter presenteado o par Benito Mussolini com uma luxuosa “coleção completa” das obras nietzschenas não lera desse mais que algumas citações. E, ainda assim, só textos extremamente manipulados, pois só assim poderia este aproximar-se daquele que lamentara a falta de afeto alemão pelos judeus e exigira um repúdio claro ao anti-semitismo.
E não se culpe apenas os nazistas, pois Nietzsche entendeu uma realidade humana: “Não vemos um leitor que leia todas as palavras. Em vez disso, tira, de vinte palavras, mais ou menos cinco, adivinhando o sentido que supostamente compete a essas cinco palavras. Estamos habituados a mentir, sendo mais artistas do que sabemos.”
Daí para o linchamento da verdadeira proposta do filósofo é um passo. No caso de Nietzsche, sua obra havia atacado cristãos, idealistas, racionalistas, marxistas, anti-semitas, nacionalistas, nazistas, chamando contra si se não uma conjunção espantosa de forças, ao menos uma convergência de ataques individuais de cada área.
Seja como for, apesar disso, Nietzsche foi obrigado a reolhar com interesse especial a sua própria obra, pois a deturpação do que escrevera, ao tempo em que aborrecia, também assombrava e envaidecia. Percebeu que sua influência permeava as bases dos conceitos mais radicais da época, sendo adotado exatamente por boa parte dos que atacara.
O que escrevera era bem mais amplo do que imaginara, comentando à amiga Malwida: “A atmosfera que me envolve seduz, gozando eu de um prestígio estranho e misterioso”. Preocupou-se: “Fico apavorado quando penso quantos homens desautorizados e inadequados recorrerão à minha autoridade”. Concluiu: “É o tormento de todo grande educador da Humanidade tornar-se, a depender das circunstâncias, uma fatalidade ou uma bênção para os homens.”
O sagaz Nietzsche chamara os marxistas de fantasiosos, despóticos e reacionários, que queriam a plenitude de um absurdo poder estatal e o aniquilamento do indivíduo, só podendo existir via terrorismo e perseguição. Conforme lembrou Alan Taylor, num assomo visionário, o filósofo afirmou que a progressão da proposta marxista tenderia apenas a produzir duas linhas de ditadura, uma pró e uma contra, ambas extremamente danosas à Humanidade.
Se o processo seguisse adiante, seria praticamente certo o caminho para mais uma tirania, ainda que fosse a da igualdade, que, imposta, nada teria de melhor que a pior escravidão. Daí, fica explicado porque George Lukács, com sua verborragia marxista, viu nesse filósofo “os mitos da burguesia imperialista, mobilizando forças contra o socialismo”.
Nietzsche chamou os racionalistas de ressentidos sonhadores ingênuos e maldosos, atacando-os sem qualquer contemplação, questionando: “O que destrói mais rapidamente do que trabalhar, pensar, sentir, sem uma necessidade interior, sem uma profunda eleição pessoal, sem prazer, como autômato de um dever?” Ou seja, estava na via do nosso conhecido Borges, que afirmara que “não se pode contemplar sem paixão”... ou... mais diretamente o nosso “sem tesão não há solução”.
Não havia qualquer contemplação para um Nietzsche sem meias palavras para o racionalismo idealista: “ é a receita para a decadência e até para a imbecilidade”. A ele não faltavam exemplos a dar, lançando mão de referenciais expressivos: “Kant tornou-se um imbecil!” proclamou.
Daí, a campanha de tentativa de massacre levada adiante pelo pelotão de racionalistas, como Schilling, que viu em Nietzsche a justificativa da escravidão, mas apenas indicando frases isoladas e fazendo vista grossa às metáforas. O também racionalista André Comte-Spomville, que chegara a declarar-se nietzscheano quando mais jovem, repudiou-o mais tarde, insistiu em ver em Nietzsche um anti-semita. Com a divulgação dos documentos evidenciando ser o filósofo, de fato, contra os anti-semitas, legou uma preciosa e hilária afirmação: Que o filósofo era, ao mesmo tempo, anti-semita e anti-anti-semita. Defendeu-se Comte-Spomville afirmando ser Nietzsche tão rico em procedimentos e envergadura que seria muito bem capaz dessa antítese.
Alain Boyer, um racionalista típico, conclamou os seus companheiros a “seduzirem” aqueles que estariam “dispostos a se deixarem levar pelas sereias irracionalistas”, insto é, aqueles que denominou “nietzscheanos”, acusando Nietzsche de “confundir os planos” do existir. Acabou vociferando furioso quando um filósofo daquelas fileiras opositoras sorriu e ironizou: “Por favor... Não apele para a metafísica”.
Comte-Spomville, assim como Boyer, cego à farta documentação surgida, insiste, através de exercício de raciocínio com ares sofistas, num Nietzsche anti-semitista, e, a partir das elucubrações nietzscheanas, chega ao racismo, ao massacre e ao nacionalismo. Para esse estudioso, mesmo “sem ser, evidentemente, uma causa do nazismo, nem mesmo uma das suas fontes reais, Nietzsche não deixa de pertencer ao mesmo mundo espiritual, do pensamento alemão anti-democrático, anti-judeu e anti-racionalista que produzirá o nazismo, e isso, sem absolutamente as autorizar, explica um pouco as pretenções nietzscheanas deste ou daquele nazista, assim como os comportamentos nazistas deste ou daquele nietzscheano.”
Ou seja, uma tirada típica de Comte-Spomville, que Nietzsche não era culpado mas foi culpado do nazismo, que não era nazista mas participava do seu mundo, portanto, de certa forma, era nazista. Chamar o nazismo de anti-racional é desprezar o poder da lógica do extermínio, tão bem exibida no filme “Arquitetura da Destruição”. Chamar o nazismo de anti-racional é não ter o mínimo conhecimento estético e histórico, que poderia fazer o estudioso perceber nas obras, postura, métodos nacional-socialistas exatamente o racionalismo.
Dizer que Nietzsche pertencia ao contexto alemão da época, anti-judeu, é fechar os olhos a livros e correspondências disponíveis em abundância sobre as posturas de Nietzsche. Mas, que racionalista gostaria de jogar limpo quando o tema é Nietzsche?
Não digeriram nem o farão os “sonhadores, ingênuos e maldosos”... Como não esperar desses as mais venenosas deturpações, que emanam desses leituras forçosamente e intencionalmente equivocadas, incompletas, facciosas, maldosas, mas trabalhos isentos respeitados como os de Thomas Abraham, no dizer de David Fuks, “incursionam por esse filósofo sem ocultar sua grande admiração e o caráter de homenagem que revestem”, negando essa doença em sua obra.
Quanto à confusão que fizeram com o que escreveu, isentos como Gottfried Benn reafirmam: “Nietzsche não teve culpa do que os políticos fizeram”. Ele próprio, para Thomas Mann, via na Política um disvalor, enquanto para Thomas Abraham, ele apenas foi crítico na visão à política como forma de superação das dores humanas.
Voltando seu fogo em direção aos anti-semitas e nacionalistas do nazismo em organização primeira, em uma carta ao nazista Theodor Fritsch, Nietzsche colocou que “os judeus são mais interessantes que os alemães”, sublinhando que a história judaica propõe vários problemas bem mais fundamentais. Daí haver concluído que todo o pensador teria que contar, caso quisesse algum sucesso, em todos os seus projetos, com a presença valiosa dos judeus na Europa. Se os alemães temiam a esses, era porque agiam como “um povo cuja espécie ainda é fraca e indeterminada”, enquanto “os judeus são, sem dúvida nenhuma, a raça mais forte, mais tenaz que vive agora na Europa. Sabem impor-se mesmo sobre as piores condições, até melhor que nas favoráveis. Não são guiados por outros, modificando-se só por eles mesmos... Neles há grandiosidade moral, temível majestade de reivindicações infindas, sentido de valores infinitos, todo o romantismo e a sublimidade de enigmas... Tudo o que há de mais atraente, cativante e requintado no jogo de matizes e tentações do viver... Nós, artistas, filósofos, somos reconhecidos aos judeus”. E rematou: “Confesso que me sinto por demais distante do espírito alemão para ter paciência com suas idiossincrasias particulares, especialmente o anti-semitismo.”
Nos tempos de um nazismo jovem, o filósofo ainda considerava risível qualquer leitura dos textos desses “cabeças duras empolados”. Comentava que, se era por acaso que não tinha nenhum amigo judeu, era por seus escrúpulos que não tinha amigos anti-semitas. Mas, quanto mais expressivo tornara-se aquele movimento, mais necessário foi ao filósofo demarcar sua posição contrária. Para ele, conceitos como raça, cultura, pureza, verdade, arte, nação, dentre outros, estavam sendo muito mal tratados pelos ideólogos nazistas. Daí haver colocado que deveria ser sublinhada a estupidez da “abominável mania de diletantes de se meter na questão do valor dos homens e das raças, com falsificações absurdas e acomodações de conceitos vagos”.
Afirmando-se seriamente irritado e forçado a sair da “irônica complacência”, enviou cartas a notórios anti-semitas, recheadas de desprezo, por “ver o nome de Zarathustra em suas bocas”.
Referiu-se àquilo tudo, ao amigo Overbeck, como uma confusão bizarra. Protestou: “Eu sou apenas um mal-entendido, entre os alemães”.
Conforme lembra Miguel Morey, “exatamente devido à triste pilhagem e manipulação do seu pensamento pelo bárbaro nazista, num processo de generalização, distanciou-se de tudo o que fosse alemão.” Nietzsche escreveu: “Pense-se nos lugares em que há ou houve homens ricos de espírito, em que engenho, refinamento e malícia são partes da felicidade, onde o gênio quase que necessariamente sentiu-se em casa... Paris, Provença, Florença, Jerusalém, Atenas.” Nada para a Alemanha e, ainda, a presença firme de Jerusalém como celeiro de gênios.
Afirmou crer na existência, em sua época, de uma cultura francesa, sendo as demais apenas um mal-entendido no desenvolvimento das civilizações. Os poucos casos de alta cultura com que deparara na Alemanha, reolhados, seriam tidos como eslavos, croatas, italianos, holandeses ou judeus. Desqualificou os alemães como representantes históricos de qualquer preeminência cultural ou moral, rematando: “O alemão sintetiza o encontro do mais nobre com o mais vulgar, digere mal seus acontecimentos, ama a comodidade intelectual, é complacente, só possui uma aparência de profundidade e de arrojo... Ler livros em alemão é uma tortura... Onde reina, a Alemanha corrompe a cultura.” Daí, conforme sublinha Thomas Abraham, aquele filósofo sinalizou a necessidade de uma reforma cultural na Alemanha, com novos valores e líderes, repudiando firmemente as teias crescentes do proposto pelos nazistas. Chegou mesmo Nietzsche a sugerir a necessidade de se criar uma liga européia anti-alemã, sendo perfeito na visão lançada em carta ao anti-semita Schmeitzner: “Prevejo terremotos europeus de monstruosas proporções, todos os movimentos indo nessa direção, inclusive o seu anti-semita.”.
Cortou relações com o compositor Richard Wagner, em função do germanismo e anti-semitismo daquele. Também rompeu radicalmente com a irmã, em função da mesma ser “tola, vingativa e anti-semita”. Assumindo que abandonara toda e qualquer moderação, declarou: “nada representa obstáculo maior à minha influência do que a associação do meu nome com anti-semitas. Sou capaz de jogar porta afora quem quer que me inspire a menor dúvida a esse respeito.” Exigiu o confronto, bradando contra a “esses abortos da Natureza...a canalha anti-semita”, acusando a irmã por “estimular a mais funesta de todas as confusões”, lamentando-se: “você poderia evitar se estabelecer tão diretamente junto a meus antípodas”.
Sua conclusão não poderia ser outra: “Desejo, cada vez mais, que os judeus ascendam ao poder na Europa, para que não precisem mais serem os oprimidos. O alemão que, apenas por ser alemão, pretende ser mais que um judeu, faz parte de uma comédia, a menos que encontre seu lugar num asilo de loucos. O que desejo, finalmente, é que se obrigue os anti-semitas a deixarem a Alemanha.”
Pareceria estranho para quem pregou contra o que chamou “moral judaico-cristã”? Só para quem não leu Nietzsche, ao menos querendo realmente entendê-lo. Quando ele assim falava, não comportava qualquer manifestação contra o judaísmo, mas sim contra o cristianismo, que julgava uma péssima adaptação ou derivação daquela religião mais antiga e forte. Afinal, para ele, “os judeus são o povo mais notável da História Universal, pois que, colocados ante a questão de ser ou não ser, preferiram, com clarividência alarmante, ser a todo custo”. Para Nietzsche, os ditos cristãos falsearam de tal maneira a Humanidade que, ainda hoje podem ser vistos como herdeiros da mesma divindade, usarem o mesmo Testamento Antigo, não se verem como uma conseqüência de um judaísmo deturpado, e serem anti-judeus. Daí ele achar conveniente sempre chamar a atenção: judaico-cristão é um título adequado.
Passando a assinar “Anti-Cristo”, só poderia atrair para si mais ódio ainda dos “judaico-cristãos”, que fomentaram, desta forma, a confusão. Assim, publicações católicas não deixavam por menos, colocando que a Segunda Guerra era o reflexo do embate de duas visões de super-Homem. De um lado, o Super-Homem de Marx, da “autodecomposição coletivista do ser humano, da instrumentalização do indivíduo e da soberba contra Deus”. Do outro lado, o Super-Homem de Nietzsche, no dizer de Daniel Dupuy, prega o extermínio.
Mas a evocação do Super-Homem e da eliminação e desprezo dos mais fracos? Não pregara Nietzsche isso? Claro que sim, rejeitando o Cristianismo e sua opção pela humildade e pela pobreza, tidos por hipócritas avessos da Vida, pregou que cada um busque ser o maior. Porém, a opção pela eliminação do fraco não passa pela questão racial, mas é uma proposta a ser trabalhada indivíduo a indivíduo, cada um devendo buscar o Super-Homem em si, eliminando o mais fraco em si mesmo. Nada a haver ou a ver com matar algum vizinho.
E a proposta de que os nobres é que devem se impor, acima dos plebeus? Para Nietzsche, nobreza é algo que não deriva de herança sangüínea ou condição financeira. Ser nobre, para ele, é lutar sempre por suas metas, não sendo importante se vence ou não. A luta tipifica a nobreza.
Michel Foulcault afirmou que o único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche é precisamente deformá-lo, faze-lo ranger, gritar. Mas, o que fizeram também foi deturpar, mentir, tentar destruir a obra desse filósofo, que foi bem claro ao afirmar: “Só alcançaremos êxito se formos fiéis a nós mesmos... Sou inteligente porque demonstro afabilidade, sem qualquer grão de soberba ou desprezo secreto... A minha fórmula para a grandeza do ser humano é “Faça o Amor!” a qualquer tempo.” Não... Nietzsche não era um nazista.
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A Utilização deste artigo é permitida, desde que citada a Fonte:
SILVA FILHO, Rubens Antonio. “Nietzsche e o Nazismo - Nas Asas da Mentira.” Salvador (Bahia): A Tarde (jornal), Caderno de Cultura, p.8, 19 de agosto de 2000.
Bibliografia
BOYER, Alain. Hierarquia e Verdade. São Paulo: Editora Ensaio, “Porque não somos nietzscheanos” (l), p.11-36, trad. Roberto Leal Ferreira, 1993.
COMTE-SPONVILLE, André. A besta-fera, o sofista e o esteta. São Paulo: Editora Ensaio, “Porque não somos nietzscheanos” (l), p.37-96, trad. Roberto Leal Ferreira, 1993.
CRESON, André. Nietzsche – Sa vie, son œuvre. Paris (França): Presses universitaires de France, 1947.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche, o bufão dos deuses. São Paulo: Redume Dumará, 1994.
LEGROS, Robert. Metafísica nietzscheana da Vida. São Paulo: Editora Ensaio, “Porque não somos nietzscheanos” (l), p.151-190, trad. Roberto Leal Ferreira, 1993.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Sobre a Verdade e a Mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, Os Pensadores (cl), v. Nietzsche, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, p.29-38, (1873)1987.
_________________________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, Os Pensadores (cl), v. Nietzsche, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, p.39-75, (1871)1987.
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_________________________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, Os Pensadores (cl), v. Nietzsche, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, 2ª parte, p.77-107, (1879)1987.
_________________________. Aurora. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, Os Pensadores (cl), v. Nietzsche, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, p.109-142, (1880-1881)1987.
_________________________. Além do Bem e do Mal – Prelúdio de uma filosofia do Futuro. São Paulo: Editora Schwartz / Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nietzsche (cl), trad. Paulo César de Souza, (1886)1996.
_________________________. Ecce Homo. São Paulo: Editora Schwartz / Companhia das Letras, Coleção das Obras de Nietzsche (cl), trad. Paulo César de Souza, (1888)1995.
_________________________. O Anticristo. São Paulo: Editora Moraes Ltda, (1888)1984.
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