sábado, 28 de fevereiro de 2009
Herácleitos - Do ser e do estar...
Por Rubens Antonio
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"Τα πάντα ρει, μηδέποτε κατά τ'αυτό μένειν"
Os gregos chamavam-no Herácleitos (Ἡράκλειτος ).
Ficou na História como um dos mais instigantes e importantes filósofos de todos os tempos, marcado por uma intuição profunda do que seria a Verdade. Seus escritos, em função da complexidade do tema, revelaram um estilo metafórico e denso, baseado em uma linguagem fundada em palavras e expressões tão complexas e cheias de simbolismos quanto exigisse o assunto. Trabalhou tantas vezes com paradoxos, que acabou tornando difícil a compreensão deles, levando os estudiosos a cognominá-lo "O Obscuro" ou "O Enigmático".
De sua obra, cujo título é “Sobre a Natureza”, chegaram até nós apenas fragmentos, que nos oferecem uma pequena amostra do que foi o vigor desse filósofo, cuja maior contribuição incidiu no campo das teorias sobre a significação e da natureza do ser humano e do Universo.
Para ele, o conhecimento da Verdade está baseado na percepção dos sentidos, podendo o Todo ser apenas pressentido, jamais racionalizável. Segundo Herácleitos, nunca de fato somos, mas sim estamos, e, ainda que rumemos eternamente para um Ser, jamais Seremos.
O Ser é a Verdade de cada coisa, mas nós jamais conseguiremos Ser, permanecendo como uma promessa, um Estar-a-caminho eterno.
Avançamos perpetuamente em direção à nossa Verdade, amadurecendo paulatinamente até chegar muito perto dela, mas, como a Perfeição Absoluta, está sempre evoluindo, quando chegarmos até o local onde esteve, já terá escapado ao nosso alcance.
A vida é um eterno Vir-a-Ser, um Sempre-Estar e um Nunca-Será. Passamos nossa existência a perseguir em vão a nós mesmos. O Existir é um trágico e maravilhoso Estar, provocando o caráter dual que se encontra em nós e no próprio Universo, que se reflete na existência, por exemplo, de coisas frias ou quentes, úmidas ou secas, além da constante mobilidade do Ser. A um só tempo Causa e Efeito, está o conflito contido em cada unidade orgânica, inorgânica ou conceitual, no nosso Cosmos, num jogo eterno de oposições, com os contrários se embatendo e completando eternamente, que norteia toda a existência.
Para Herácleitos, todos os seres e coisas são, paradoxalmente, ao mesmo tempo, idênticos e diferentes em si próprios, têm a mesma substância, mesmo assentamento espaço-temporal, mas sentidos de evolução díspares, apesar de complementares. Eis um de seus célebres fragmentos: Pisamos e não pisamos, duas vezes nos mesmos rios, pois as águas novas estão sempre fluindo... e também somos e não somos os mesmos... Isso é oportuno, pois, conclui Herácleitos, só há compreensão quando há contradições claras, de forma a dar ao observador uma plena consciência do que analisa. Afinal, que valor daria um ser humano à saciedade, se não existisse a fome? Só temos perfeita noção de frio, por existir o calor.
Há necessidade do discordante, do péssimo, do desagradável, do dissonante, para que absorvamos apropriadamente o conforme, o excelente, o adorável, o adequado. Daí, os seres humanos serem como o discorde e a harmonia dotados de elementos em conflito, assim como a lira, que sem o jogo de tensões cordas-arco não produziria música. Esse conflito é comum a todas as coisas, que nascem e morrem por meio da discórdia.
Tensões opostas constituem a estrutura oculta do Universo, garantindo seu equilíbrio, sendo a única constante, gerador e égide de toda harmonia, sem o qual nada é possível, fazendo de certas criaturas deuses e de outras homens, umas livres e outras escravas. Têm os seres humanos, os deuses e o universo que estar em contínua guerra, pois se houvesse um momento de paz esse Tudo pereceria inexoravelmente.
Como nada é constante, tudo passa, tudo flui, sendo a vida uma sucessão de realidades sempre distantes. Eis o que conclui em outros de seus fragmentos que restaram:
Nada É... Tudo sempre está se fazendo. Tudo flui (πάντα ρει), nada permanecendo, senão o que é instável, pois onde não há inconstância há decadência...
Para Herácleitos, este Cosmos não foi criado por qualquer ser inteligente, devendo a sua natureza mais profunda ser observada a partir das transformações de quatro elementos básicos, água, ar, terra e fogo. Entendeu que eles realizam um tipo de diálogo de existência e transformação, com cada um devorando o outro, ao mesmo tempo que morre, pois consome o seu alimento. Julgou ter encontrado aí as relações fundamentais, numa verdadeira roda-viva concepcional, onde viu a base de tudo no fogo, o elemental mais fugidio e transformável. Tudo dele vem e para ele retorna, sendo o princípio fundamental no qual está determinada a vida, que aparece e muda segundo maior ou menor conteúdo de fogo. O fogo determina todas as coisas e vice-versa, verificando-se a mudança através de condensações e rarefações, provocando indigência ou plenitude.
A divisão da Unidade, esse Fogo Divino Original, na multiplicidade dos fenômenos opostos, é um "caminho para baixo", o que provoca sua perpétua revolução. A busca da harmonia leva novamente à Unidade pelo "caminho para o alto". Herácleitos afirmou não poder precisar em que consiste realmente esse Fogo Verdadeiro, apenas podendo tecer comentários quanto à sua natureza, sendo algo mais que o perceptível pelos sentidos comuns, tendo características muito mais elevadas. Tudo acende e apaga na mesma medida, e esse fogo, expressão da própria razão divina, princípio ativo, inteligente e criador, Lei Universal, gera, ao tempo em que conduz à destruição, que arrasará tudo, até mesmo os deuses. Para que pudéssemos existir, algo pré-existente teve que ser destruído, da mesma forma que, em um futuro incerto, novos seres humanos, deuses e universo estarão aqui, ocupando o espaço deixado pela nossa destruição.
Desta forma, Herácleitos buscou, através da sua emoção controlada, o significado, o sentido e, porque não dizer, a lógica e a razão desse contínuo Vir-a-Ser, da Geração e Destruição eternas. Pretendia encontrar a Lei Superior, que produz a harmonia dos contrários no conflito universal e conforme a qual tudo é regido em sua totalidade... A um certo nível, em linguagem atual, queria entender o raciocínio e os sentimentos de Deus...
Por isso, ciente do impacto e conseqüência de todo o seu pensamento, confiou sua obra ao templo de Artemisa, em Efésos, com a condição única de que o seu conteúdo só fosse publicado após sua morte, que aconteceu em 475 aC.
À luz do estágio atual da ciência, os estudos de Herácleitos seguem, como ele mesmo gostaria de dizer, um "caminho para cima". O seu fogo interno, cuja natureza real ele não conseguia mais que especular, pode ser denominado por nós energia, ganhando sentido novo. Teria antevisto de maneira espetacular um conceito atual, como um vidente de expressão fantástica, aproximadamente na mesma época em que Demócrito estabelecia o conceito de átomo e, logo, Arquimedes estava a descobrir mecanismos de máquinas fantásticas. O domínio da eletricidade, do cálculo diferencial e integral poderiam ter florescido rapidamente, chegando a causar um arrepio pressupor que a Grécia antiga, com base na Filosofia e nas ciências que esta embasou, suas filhas, como a Matemática, a Física e a Química, caso se entregasse mais às atividades do saber científico e menos às mesquinharias políticas e às guerras, pudesse ter chegado à revolução industrial, à energia elétrica e à nuclear. Mas logo as loucuras bélicas aniquilaram o vigor grego antigo, e os seus sucessores culturais - a indolência romana, o barbarismo germânico e o escapismo cristão - só fizeram confirmar o retrocesso, fazendo com que a humanidade passasse cerca de dois mil anos marcando passo.
Observamos a nossa estrela mãe, o Sol. Da nuvem que o envolvia viemos, com o nosso mundo começando sua existência em meio a chamas e mares de lava, que pareciam eternos. Tudo que está ao nosso redor foi fogo e sabemos que o Sol é o fruto do equilíbrio entre explosões nucleares indescritíveis, que ocorrem em seu interior, e o peso imenso das suas camadas superiores, a evitar sua explosão. É o jogo de tensões opostas, a garantir o equilíbrio, que um dia deixará de existir.
O astrônomo, humanista e filólogo Carl Sagan, famoso pela série de televisão, Cosmos, parece ter lançado a mais clara projeção das idéias de Herácleitos, para o nosso tempo. Segundo ele, não há abrigo que nos proteja das mudanças no Cosmos, quando "as colossais explosões de estrelas supernovas podem ser como a agonia da morte e as dores do parto. Isso por toda a estrela e os planetas próximos serem destruídos, ao tempo em que novos elementos são criados, constituindo a matéria de novos mundos e novas formas de vida". Daqui a uns quatro ou cinco bilhões de anos, quando a força das explosões internas diminuir o suficiente, a superfície do Sol mergulhará rumo ao seu próprio interior. Isso provocará uma tensão imensa, paradoxalmente, bem ao gosto de Herácleitos, resultando numa espécie de explosão, que conduzirá a um ressurgir glorioso e fenomenal desse astro. Em tal momento, como o deus Saturno, o Sol devorará os seus filhos, entre os quais estará este nosso lar – a Terra.
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A Utilização deste artigo é permitida, desde que citada a Fonte:
SILVA FILHO, Rubens Antonio da. "Herácleitos: O homem do rio corrente".
Salvador (Bahia): A Tarde (jornal), Caderno de Cultura, p.8, 20 de fevereiro de 2000.
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2 comentários:
Rubens, você sabe que sou sua fã. Parabéns, não somente por esta postagem, mas para todo o blog, que está sensacional também. Eu me orgulho em ter um amigo que cultiva tanto o pensamento como você.
Um beijo!
Chris
caro amigo muito bom teu artigo,
conforme autorização q. agradeço,
ele estará sendo divulgado no Canal de Filosofia do Espaço Ecos Portal VMD, nesta semana,
abraços de admiração
virgínia fulber
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