Olhando o céu, podemos
contemplar o cintilar majestoso da estrela Canícula, a nossa conhecida Sirius,
assim como, em algumas horas de alvorecer ou vespertinas, reluz soberano o
planeta Vênus, também denominado Vésper ou Estrela d'Alva. Ligando estes
astros, além da beleza tanto melancólica quanto esfuziante, com que brindam o
céu, há mais um ponto envolvido pelas cortinas da nossa fraca memória. Ambos
serviram de referência para o culto à deusa Afrodite, aquela “do véu ligeiro”, do
Amor que pare, seduz, mata e devora, entre delícias e maldições. E a mortal
Safo, das profundezas de seu momento agora tão longínquo, junto com os vapores
dos seus incensos, aos céus elevou, algumas das mais belas preces a essa
divindade de muitas faces e atributos.
Conforme Enrico Prampolini,
esta poetisa, associando paixão ardente e ternura suave, sempre melodiosa e de
versos apurados, assegurou para si uma modernidade ininterrupta. Johan Huizinga
já definira a poesia como o meio mais apropriado para exprimir tudo aquilo que
é vital, ordenando para facilitar a memorização e o prazer, e nessa arte Safo
foi uma mestra, provavelmente, conforme Swinburne, a primeira que a Humanidade
conheceu.... e quase esqueceu.
"Safo" - Óleo de Charles-August Mengin - 1877
Bibliograficamente, sabe-se muito pouco sobre Safo.
Seu nome, no que chamamos "grego': Σαπφώ (Sapfó) ... Em seu dialeto local: Ψάπφω (Psápfo)).
Esta dama aristocrática nasceu, em 618 aC, em Erésos, na ilha de Lésbos. Viu-se órfã de pai aos seis anos. Casou-se com o rico Kerkílos e teve uma filha chamada Cleides. Tornou-se sacerdotisa, chegando a ser exilada duas vezes por questões políticas.
É o que se coleta da tradição.
No mais, as afirmações enveredam pelos caminhos imaginosos, assim como quando, apenas por ter sido encontrada na Sicília uma antiga imagem sua, lança-se que ali teria sido exilada.
Mesmo seus "retratos" escultóricos, datados de, no mínimo, cerca de um século após sua morte, não têm qualquer obrigatória veracidade. Os rasgos de descrição que seriam 'mais fidedignos" vêm de um papiro egípcio, que a desenhou baixa e algo amorenada, e do poeta Alcaios, seu contemporâneo, que, em linguagem envolta pelas brumas da poesia, lançou-a como
"Safo, das tranças violáceas, do doce sorriso."
Aparece também citada em outra versão deste mesmo recorte:
"Pura Safo, de violetas coroada e de suave sorriso."
Safo e Cleides ouvindo Alcaios - Pintura de Alma Tadema -1881
É fato que essa poetisa pertenceu ao primeiro período da poesia lírica grega, sucedendo a geração da epopéia, onde estão alocados Homero e Hesíodo. Aí, onde a tradição barda e a escrita se imbricam, ela lançou suas obras, declamáveis e cantáveis. Estas foram consideradas tão belas que chegou a autora a ser reverenciada, já na Antiguidade, como a "Décima Musa".
Iniciara-se no estudo de cantos articulados, mais conhecidos como líricos, por o bardo sempre se fazer acompanhar por uma lira, e, através de odes, elegias, cantatas, sonetos e madrigais, desvelou o Amor.
Em suas poesias-canções, decifrando nossas almas-esfinge, lavrou suas obras tecnicamente perfeitas em seu dialeto eólio, chegando a, para isso, criar sua original estrofe sáfica.
Safo e Alcaios - Pintura sobre jarro helênico do século V aC.
Safo se elevava em uma sociedade masculinizada, brandindo um Amor que vagava entre sublime e atônico, lírico e erótico, daí poder-se imaginar o quanto adentrou terrenos perigosos.
Ao trabalhar sobre temas tão explosivos, dizendo coisas que normalmente agrediriam os ouvidos e espíritos "mais conservadores", conforme Peter Green, calou suas bocas, pois o fez tão belamente quanto ninguém mais.
De fato, ler o que restou das suas poesias fornece-nos um panorama enaltecedor, onde as linhas são expressão de segredos sinceros e profundos do "eu", passeando através de infernos e primaveras interiores.
Aí, entendemos o que La Fontaine quis dizer sobre a força da busca do natural e do seu galope irresistível. E é nele que encontramos Safo, com colorido linguístico e crueza de quem não sente qualquer culpa ou vergonha de, sinceramente, Amar.
No auge da sua maturidade, fundou uma escola musical e poética, onde educou moças nobres que demonstravam sensibilidade artística, direcionando-as para o culto de Afrodite e das Musas.
Cantou o Amor e o companheirismo entre moças, gerando uma confusão mal resolvida até hoje, pois há uma homossexualidade conjecturada em sua obra "Epitalâmios".
Se para os mais isentos as indicações são insuficientes os elementos para resolver essa pendência apaixonada, os mais convencidos indicam que sua amante teria sido Erini, sua discípula.
Também se evoca que teria tido uma amante chamada Cleis (Κλεΐς). Entretanto, é voz cada vez mais clara que essa, à qual dedicou versos, teria sido sua filha.
Em um fragmento aparece:
"Tenho uma preciosa menina
bela como as flores de ouro
Minha muito Amada Cleis."
Como saber?
No final da vida, por volta de 565 aC, a Safo histórica deixara nove livros permeados pelo culto absoluto ao Amor.
Pouco crível, certamente mais um passo do processo mitificante é a versão que conta que, apaixonada e repelida pelo barqueiro Faón (Φάωνα), precipitou-se ao mar.
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O que provocou, então, a visão dominante de uma Safo homossexual?
O problema está em que os primeiros a fazê-lo, buscando assim achincalhá-la, dado considerarem tal ofensivo, foram os escandalosos poetas satíricos da Grécia do século III aC. Aquela fonte de referências turvas transformou essa poetisa necessariamente em uma homossexual ou em uma ninfomaníaca onívora, patética e risível.
Até mesmo, para reforçar seus "argumentos", quando necessário alteraram as poesias desta.
Ainda assim, permanece uma questão séria.
Por que, da totalidade da obra de uma poetisa tão respeitada pela qualidade do que disse, apesar do que disse, temos apenas migalhas? Sabe-se que, entre os romanos, a reverência aos seus versos foi elevada. Horácio estudou sua obra, no século I, mas sua citação ocorria cada vez menos, esvaía-se sua figura nas escolas, tornando-se, a partir do século III, uma raridade.
Não custa muito para entendermos o que aconteceu.
No século II, o apologista cristão Tatianus atacara suas obras severamente, e, já no século IV, Gregório Nazianzus comandou a primeira grande queima de livros de Safo.
A pancada final, que eliminou para sempre a imensa maioria das suas obras, deu-se em 1073, sob orientação do papa Gregório VII.
Impunha-se um mundo de mulheres caladas e hipocrisia, no qual não cabia Safo.
Como conseqüência, em Roma e em Constantinopla, fogueiras de dimensões impressionantes consumiram suas obras, escapando desse holocausto apenas alguns poucos textos. Estes não chegam a expressar sequer um décimo da obra sáfica.
O filósofo Heidegger afirmou que a poesia não é o sério da ação, sendo um sonho, um jogo de palavras inofensivo e ineficaz. Então, por que a obra de Safo foi tão perseguida e violentada?
Será que foi por ter sido mulher, inteligente, pagã, talvez homossexual e/ou por dizer o que quis dizer, sem medo?
Segundo Latino Coelho, de todas as Artes, a mais bela, expressiva e difícil é a da Palavra. São as outras como ministras e ela, a soberana universal. O próprio Rui Barbosa foi taxativo ao afirmar que escrever com pureza e Arte é próprio de espíritos privilegiados.
Assim foi, por certo, Safo, essa mulher, na qual a paixão atormentava e enlevava, jamais envergonhava, domando a mais sublime, expressiva e difícil das Artes.
Podemos imaginá-la com uma lira na mão, a declamar a sua expressão mais famosa:
"Amo... Daí, consumo-me..."
O tempo levou seu físico e a intolerância muitas das suas obras, afinal, conforme ela mesma afirmou:
"Como a Noite estrelada segue o Crepúsculo de róseos braços, espalhando suas trevas até os confins da Terra, assim a Morte persegue todas as coisas e, no fim, as apanha..."
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Rubens Antonio é mestre em Geologia, licenciado e bacharelado em História, bacharel em Geologia e artista plástico.
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A Utilização deste artigo é permitida, desde que citada a Fonte:
SILVA FILHO, Rubens Antonio. "Safo - A filha imortal de Afrodite."
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